domingo, 1 de março de 2015

Escândalo bancário global reacende debate sobre papel social da internet

Comunicação

Caso apelidado de 'Swissleaks' aprofunda discussão iniciada em episódios denunciados por Assange e Snowden.Nos casos das denúncias feitas pela web por Assange, Nuzzi, Snowden e Falciani, a maior discussão se dá em torno do que seria um aparente conflito entre dois direitos fundamentais: o Direito à Privacidade e a Liberdade de Expressão

DN
foto - Reutrs
Imagine um banco multinacional com milhões de clientes, em praticamente todos os países do mundo. Considere, no entanto, que esse banco mantém dezenas de milhares de contas secretas em uma de suas unidades.
Pense ainda que um funcionário tenha acesso aos dados dessas milhares de contas e os traga a público. Acrescente à trama, um website, criado e mantido por jornalistas do mundo inteiro, que se debruça sobre esses dados e revela que entre esses correntistas há desde monarcas até pessoas envolvidas com crimes como tráfico de drogas. Parece, mas essa não é uma história narrada em um dos filmes que concorreu ao Oscar, no domingo passado.
O fato real envolveu o banco britânico HSBC Private Bank, em uma de suas filiais suíças, mais precisamente na cidade de Genebra. Os dados divulgados são referentes a 106 mil correntistas ao redor do mundo, dos quais cerca de 8,6 mil são residentes no Brasil, no período entre 2006 e 2007. No total, essas contas até então secretas, somavam respectivamente US$ 100 bilhões e US$ 7 bilhões.
O denunciante é o especialista em sistemas de computador, Hervé Falciani, um franco-italiano (apesar de ter nascido em Mônaco), que trabalhava para o banco e chegou a ser detido na Suíça por suspeita de ter roubado informações bancárias sigilosas. Liberado, ele fugiu para a França e em 2008 entregou os dados a que teve acesso às autoridades daquele país.
Poucos anos depois, o Fisco francês cedeu o material ao jornal Le Monde que compartilhou o conteúdo com o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), algo como Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos.
A equipe da associação jornalística analisou os dados brutos sobre as contas durante meses, até que no início de fevereiro, começou a publicar reportagens revelando alguns nomes por trás delas, entre eles o do piloto de Fórmula 1, Fernando Alonso, o presidente do Paraguai, Horacio Cartes, e o dos reis Mohammed VI e Abdullah II, do Marrocos e da Jordânia, respectivamente.

Impacto no Brasil
No Brasil, o jornalista Fernando Rodrigues, integrante do ICIJ, também revelou que nomes citados na Operação Lava-Jato, empresários do setor rodoviário, banqueiros e industriais do setor têxtil mantinham contas no HSBC de Genebra.
A repercussão do caso no País, em parte ofuscada pelas investigações sobre suposto esquema de corrupção na Petrobras, motivou a articulação de parlamentares na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
A primeira manifestação partiu do deputado federal Paulo Pimenta (PT-RJ), que solicitou ao Ministério da Justiça e à Procuradoria-Geral da República a apuração sobre eventuais crimes fiscais cometidos por brasileiros, através dessas contas secretas. Na quinta-feira (26), foi a vez do deputado federal cearense Chico Lopes (PCdoB) apresentar requerimento de informações ao Ministério da Justiça.
"Nós sabemos que o banco, lícita ou ilicitamente, recebeu esse dinheiro. É um escândalo de caráter internacional. O Brasil tem quase dez mil pessoas na mira dessa investigação. Nós fizemos um requerimento solicitando uma consulta ao Banco Central. Eles terão 30 dias para nos informar o que dispõem", explicou o comunista.
No mesmo dia, só que no Senado, a discussão foi mais adiante. O senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) coletou cerca de 30 assinaturas, número superior às 27 necessárias para solicitar a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Casa. O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), decidiu a favor da instalação, ainda na quinta.

Para além da política
Mas independentemente dos desdobramentos políticos ou criminais que as investigações sobre o escândalo conhecido como "Swissleaks" venham a ter, o caso já serviu para reacender o debate sobre o papel social da internet, aprofundado também a partir de escândalos anteriores, tais como o "Wikileaks", o "Vatileaks" e as denúncias do ex-agente do serviço de inteligência dos Estados Unidos (NSA), Edward Snowden. Vale também citar as manifestações que sacudiram o mundo em países como Tunísia, Egito, e, mesmo o Brasil, cujas mobilizações começavam a ser promovidas nas redes sociais.
Nos casos das denúncias feitas por figuras como Julian Assange, Gianluigi Nuzzi, Snowden ou Falciani, usando a internet como a principal ferramenta, a maior discussão se dá em torno do que seria um aparente conflito entre dois direitos fundamentais, previstos tanto na Constituição Federal, quanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos: o Direito à Privacidade e a Liberdade de Expressão.
Tudo isso permeado pela questão do conceito de "Interesse Público" e, no caso do Brasil, sob a luz do Marco Civil da Internet, aprovado em 2014.
De acordo com o advogado e professor universitário, Paulo Sá Elias, "essas revelações são de extrema gravidade e importância para o mundo todo. O interesse público com certeza será o forte argumento no processo de ponderação que normalmente é utilizado pelos Tribunais para solucionar conflitos de direitos fundamentais".
Ele, que é também mestre em Direito Constitucional, acrescenta que "na prática, não se atribui preferência a um ou outro princípio ou direito fundamental, mas na realidade, há um esforço do Tribunal para que seja assegurada a aplicação das normas conflitantes, ainda que uma delas possa sofrer atenuações. Se há interesse público envolvido, ou seja, interesses primários, de coletividade, o sigilo bancário privado pode e deve ser excepcionado".

Ferramenta serve às lutas do século XXI
No século passado, as lutas pela descolonização ou contra a discriminação racial, por exemplo, foram encampadas por milhares de pessoas que arriscaram suas vidas pelas causas que defendiam, muitas vezes inspiradas por líderes com forte oratória ou semblante inquebrantável.
No século XXI, de acordo com especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, os ativistas têm um perfil um pouco diferente, mas uma ferramenta tão ou mais poderosa que microfones ou câmeras às mãos.
Aliás, uma ferramenta que contém esses e outros instrumentos de divulgação de mensagens: a internet, que além de tudo permite reunir uma quantidade de informações inimaginável há 50 ou 60 anos atrás.
"Quem hoje teria coragem de se posicionar, por exemplo, contra Mahatma Gandhi ou Martin Luther King Jr.? Eu realmente não sei dizer se comparo indevida e prematuramente Julian Assange ou Edward Snowden a esses dois grandes exemplos para a humanidade. A verdade é que na época em que eles estavam no front da duríssima batalha que travaram, vários conceitos e valores que hoje são muito claros para o estágio atual da civilização não eram compreendidos pela grande maioria", defende Paulo Sá Elias, criador do site Direito da Informática.
"Muitas pessoas não conseguiam enxergar a importância das ações que eles estavam fazendo, tanto é verdade que naquela época eles encontraram fortíssimos e perigosos opositores. Ambos foram perseguidos e presos. Injustamente, hoje sabemos. Temos vergonha disso. Será que no futuro também teremos vergonha de ter mantido o jornalista Julian Assange preso e perseguido de forma tão implacável? Idem, quanto ao Edward Snowden? - Sinceramente, às vezes tenho receio que sim", prossegue o advogado.
Já para o especialista em Direito Digital, Renato Leite Monteiro, que é também advogado, "a principal influência dessas revelações é o aumento da consciência da privacidade e da proteção de dados pessoais. Novas leis têm surgido ao redor do mundo e o Marco Civil, que estava parado no Congresso brasileiro desde 2011, avançou nesse contexto, muito devido ao fato da presidente Dilma ter sido alvo da espionagem, assim como outros membros do Executivo".
Ele explica que "essas revelações aceleraram as discussões sobre o Marco Civil e resultaram em alterações em seu texto, que era um antes das denúncias feitas por Edward Snowden e a versão final passou a dar mais proteção aos dados pessoais".
Renato Leite Monteiro afirma ainda que o Brasil poderia conceder asilo ao ex-agente da NSA. "Essa é uma questão meramente política, não há nada na legislação que impeça".
Por sua vez, Sá Elias, diz esperar "que o Marco Civil possa se firmar como uma importante legislação em benefício da Internet livre, da liberdade de manifestação do pensamento juntamente com a Constituição Federal que já traz tais garantias. O que importa, no entanto, é a prática. A realidade".

Limite tênue
Privacidade e Liberdade de Expressão
O Direito à Privacidade, assegurado internacionalmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em seu art. 12, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 17, e reforçado no Art. 5º da Constituição Federal (CF), acoberta a faculdade que cada indivíduo tem de evitar acesso de estranhos à sua vida privada e familiar, conferindo-lhe a exclusão da participação ou do conhecimento alheio sobre o que diz respeito somente à própria pessoa, ao que se quer resguardar da ingerência de terceiros. A Liberdade de Expressão, por sua vez, também presente na CF/88 e definida na DUDH pelo art. 19, consiste-se no direito de manifestar livremente opiniões, ideias, informações e pensamentos por quaisquer meios independentemente de fronteiras. Cabe, pois, relevar a antiga premissa de que um direito termina exatamente onde o outro começa, de forma que a manutenção do Estado Democrático de Direito é o bem maior a ser perseguido por todos, inclusive - e principalmente - na Internet, espaço onde deve ser muito bem calculado o limite tênue que separa os dois direitos.
Priscilla Oliveira da Silveira - Advogada*
*Membro da Comissão de Direitos Culturais da OAB

Fonte - Diário do Nordeste 01/03/2015

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