No ano de 1950, a cidade de São Paulo contava com 70 mil automóveis, 600 quilômetros de trilhos da Light e uma população próxima a 2,2 milhões de habitantes.O papel dos trilhos como ordenadores do crescimento da malha urbana foi uma característica marcante na cidade de São Paulo, assim como na de outras grandes cidades brasileiras onde a Light atuou. Até 1947, a empresa canadense trabalhou fortemente com serviços de transportes, lidando com o setor de energia elétrica até meados da década de 1970.
Por Ailton Brasiliense Pires* - ANPTrilhos
foto - ilustração/arquivo |
Em 1867, ano que marca o início da operação da ferrovia Santos-Jundiaí, a cidade de São Paulo contava com algumas dezenas de milhares de habitantes. Um censo feito em 1872 mostrava a cidade com pouco mais de 30.000 habitantes. Em 1890, esse número subiria para 65.000 habitantes.
No período entre a inauguração da Santos-Jundiaí e o ano de 1900, intervalo de quase 30 anos, é que a capital vê sua população ser multiplicada oito vezes, atingindo a marca de 240 mil habitantes.
Não é coincidência, antes um dos reais fatores do crescimento era a existência de ferrovias que perfaziam a ligação da capital com o interior do estado, onde se produzia o café, e com o porto de Santos, para a exportação. Com isso, São Paulo se tornava o mais dinâmico centro comercial e financeiro do País.
No entorno das ferrovias, nasciam e cresciam cidades.
A Light, empresa canadense fundada em 1899 sob o nome de The São Paulo Railway Light & Power Co. Ltd., nascia com uma carta patente de incorporação concedida pela rainha Victoria. No ano seguinte, assinava contrato com a cidade de São Paulo de vários serviços, com destaque para transporte público e energia elétrica.
O contrato continha itens previstos nos termos da carta-patente expedida pela rainha para a operação da empresa canadense, que delineava os objetivos ambiciosos da companhia, que viriam a ser executados na cidade de São Paulo: “estabelecer, construir, completar, manter e fazer funcionar obras para a produção, utilização e venda e produzir eletricidade gerada por vapor e força motora elétrica, a vapor, a gás, pneumática, mecânica e hidráulica ou outra força qualquer para quaisquer fins”.
A carta-patente da Light mencionava poderes para estabelecer “linhas e estradas de ferro” e “também linhas telegráficas, telefônicas e quaisquer outras a elas ligadas”, bem como “adquirir por compra, arrendamento ou por outra forma e nos termos e condições que foram ajustados quaisquer bens móveis ou imóveis, terras e direitos inerentes, inclusive referentes a energia hidráulica, lagos, açudes, rios e correntes de água”.
Graças a dois parâmetros essenciais – transportes e energia elétrica –, a Light ganhou condições de ordenar o crescimento da cidade de São Paulo, que saltaria de 240 mil moradores, em 1900, para cerca de 1,4 milhão em 1940, mais de cinco vezes maior.
Dentre várias situações interessantes ocorridas nessa época, vale destacar algumas: em 1917, a cidade de São Paulo já tinha 220km de trilhos; ao longo desses trilhos, entre 1909 e 1930, centenas de fábricas se instalaram, mesmo período em que a tarifa do transporte realizado por bondes elétricos ficou congelada.
O papel dos trilhos como ordenadores do crescimento da malha urbana foi uma característica marcante na cidade de São Paulo, assim como na de outras grandes cidades brasileiras onde a Light atuou. Até 1947, a empresa canadense trabalhou fortemente com serviços de transportes, lidando com o setor de energia elétrica até meados da década de 1970. Os trilhos balizaram o uso e a ocupação do solo nas cinco primeiras décadas do século 20, otimizando ao mesmo tempo os lucros da companhia canadense.
Em 1950, a população do Brasil era de 54 milhões de habitantes, dos quais apenas 18 milhões residiam em centros urbanos. Ou seja, dois em cada três brasileiros viviam na zona rural. São Paulo, cuja expansão urbana foi marcante, entrava na década de 1960 com 60% do PIB nacional.
Neste ano de 1950, a cidade de São Paulo contava com 70 mil automóveis, 600 quilômetros de trilhos da Light e uma população próxima a 2,2 milhões de habitantes.
A conclusão é evidente: de 1900 até 1950, a cidade de São Paulo se desenvolveu em função dos interesses da Light. A empresa canadense foi a principal criadora de bairros na zona oeste da capital, como City Lapa, Pinheiros e Alto de Pinheiros, Butantã, Pacaembu, entre outros.
Data, porém, já do final dos anos 1930 e início da década 1940 a concorrência dos ônibus ao sistema de trilhos urbanos. As empresas de ônibus passam a utilizar a mesma lógica de ocupação do uso do solo usada desde o início do século 20 pela companhia Light: adquiriam terras em locais distantes do centro da capital, faziam loteamentos e implantavam linhas de ônibus.
Vários bairros de muitas cidades brasileiras foram plantados em cima dessa lógica, primeiro a partir dos trilhos, e depois pelos empresários de ônibus que, em sociedade com empresários de terras urbanas, passaram a redesenhar as cidades.
O significado disso pode-se perceber pelas raras cidades do País que nasceram à luz do planejamento urbano. Mesmo nas poucas cidades planejadas, nota-se um erro brutal em termos de dimensão. Um exemplo é Belo Horizonte, cidade do século 20, planejada para ter 100 mil habitantes quando da mudança da capital de Ouro Preto. Há outros casos, como Goiânia, Londrina, Brasília, e mais recentemente Palmas, capital do Tocantins.
O que cabe ressaltar, no entanto, é a mudança da forma como as cidades brasileiras passaram a se desenvolver quando os ônibus passaram a concorrer com o sistema de bondes. Com os ônibus, surgiu uma relação direta e determinante entre os empresários de transporte sobre pneus com os donos da terra.
Anteriormente, desde o surgimento da Light em São Paulo, essa relação era determinada pelo fornecedor da mobilidade (os bondes), que também fornecia a energia elétrica, em negociação direta ou associação com os empresários da terra.
Essa l foi uma lógica mundial. E começou a ser quebrada a partir da década de 1920 nos Estados Unidos por interesses dos empresários da construção civil e das fabricantes de automóveis, principalmente com vistas a expandir as cidades, gerando, como consequência, a necessidade do transporte individual. A compra de um terreno vinha acoplada a um financiamento de carro, a juros de 1% ao ano. Essa, no entanto, não foi a lógica do Brasil.
A Light tinha como um dos referenciais da lógica de atuação na cidade a implantação de energia elétrica a baixos custos, o que não seria possível em uma cidade expandida. Em uma cidade concentrada, a expansão do sistema de energia elétrica e de transportes se daria com baixos custos, maximizando os lucros como consequência. No caso do transporte público, quanto mais concentrado o serviço, maior é o Índice de Passageiros por Kilômetro (IPK).
Essa forma de atuar na cidade fica comprovada quando verificamos que, na década de 1950, eram raras as linhas de bonde com IPK abaixo de 10; hoje são raras as linhas de ônibus que operam com IPK acima de 2.
A cidade, que até os anos 1960 era densa, com uma população de 3,7 milhões de habitantes, pela lógica de ordenamento e ocupação do solo, determinada pela expansão dos trilhos, viu-se espalhada rapidamente após a introdução de uma nova lógica, concorrente, determinada pela relação direta e determinante entre os empresários de transporte por ônibus com os donos da terra.
Para se ter uma ideia dos efeitos dessa nova situação que passou a prevalecer na capital, a mancha urbana, que em 1950 era de aproximadamente 200km², saltou hoje para 1,5 milhão de km², oito vezes maior, com uma população de mais de 12 milhões de habitantes. As distâncias se tornaram maiores, os empregos ficaram concentrados nas regiões centrais, e a falta de prioridade dos ônibus na circulação das vias da cidade diminuiu sua eficácia a níveis perversos.
A lentidão das linhas é uma característica marcante do sistema de ônibus não só em São Paulo, mas também em qualquer grande cidade do País. Em 1990, a velocidade de vários corredores de ônibus da capital estava abaixo de 10km/h. A soma de grandes distâncias com velocidades baixas produz o que já sabemos e assistimos há décadas: um serviço ineficiente e caro.
A lógica da implantação do Metrô de São Paulo tinha princípios “semelhantes” àqueles da Light na primeira metade do século 20. No momento em que se propõe uma rede básica de transporte, automaticamente está-se propondo aos construtores imobiliários o adensamento desse entorno.
Em agosto de 1966, foi formado em São Paulo o Grupo Executivo do Metropolitano (GEM), com a finalidade de organizar uma concorrência internacional para elaboração de estudos de implantação do Metrô. Em abril de 1968, nascia a Companhia do Metropolitano de São Paulo, criada pela Prefeitura da capital, com a missão de implantar uma rede proposta pelo consórcio HMD (formado pelas empresas alemãs Hochtief e DeConsult e pela brasileira Montreal), que vencera em 1967 a concorrência lançada pelo GEM.
A proposta continha a concepção de uma rede básica em torno de 70 quilômetros para a capital, rede que foi sendo alterada ao longo do tempo em função do crescimento da capital.
Infelizmente a lógica da Light não se deu com a implantação do metrô, não ao menos na velocidade necessária. Em São Paulo, o adensamento urbano no entorno das linhas de transporte demorou muito para ter início, uma vez que o interesse do investidor privado era levar o passageiro a morar longe, tornando-o mais e mais dependente do transporte por ônibus.
A lógica brasileira de crescimento das cidades, é bom repetir, foi diferente da lógica de outras cidades mundiais. Crescemos a taxas absurdas, coisa que não vimos em nenhum país europeu.
Em 1900, o Brasil tinha cerca de 17 milhões de habitantes, número que triplicou em 50 anos, indo para cerca de 52 milhões de habitantes em 1950. Em 2010, esse número passou dos 190 milhões, sempre com a lógica de criar regiões para favorecer a economia voltada para a construção de cidades, levando o transporte e outros serviços públicos a reboque.
Ou seja, em 110 anos, a população brasileira cresceu mais de dez vezes. Nenhum país europeu cresceu tanto assim. Enquanto aqui a lógica da expansão urbana seguiu interesses imobiliários em aliança com a indústria automotiva, lá a lógica de expansão das cidades continuou a mesma, orientada pelos sistemas de trilhos urbanos.
Vários programas habitacionais lançados nas últimas décadas no Brasil não tiveram a preocupação de adensar as cidades, nem de baixar custos, menos ainda de garantir itens essenciais de conforto para a população, como o tempo de viagem entre a casa e o emprego, encarecendo no fim todos os serviços básicos.
Parece claro, portanto, que se tivéssemos mantido a expansão urbana da capital baseada nos sistemas de trilhos, muito provavelmente não teríamos hoje a tarifa de ônibus a um custo real de R$ 6,80. O valor talvez chegasse, quando muito, à metade disso. Como consequência, a cidade não gastaria R$ 3 bilhões em subsídios, valor previsto para 2018; talvez, quando muito, algumas centenas de milhões. Em 2016, o subsídio foi de R$ 1,7 bilhão; há cerca de 20 anos não chegava a R$ 300 milhões.
A conclusão é que a quebra da lógica de ordenamento e uso do solo na capital foi fatal para o transporte coletivo. A outra má notícia é que é algo que não tem mais conserto, sendo possível apenas a adoção de medidas para mitigar os trágicos efeitos para a cidade e sua população.
Em muitas cidades brasileiras, o usuário assume sozinho o custo do transporte coletivo. Em São Paulo, isso seria socialmente muito injusto. Em contraposição, é inegável que R$ 3 bilhões fazem uma falta enorme para uma cidade repleta de carências nas áreas de saúde, educação e saneamento, por exemplo. Se houvesse metade desse dinheiro anualmente à disposição para investimentos em infraestrutura de transportes, teria sido possível nas últimas duas décadas implantar 240km de metrô, elevar a CPTM aos padrões do sistema de metrô que conhecemos, implantar corredores de ônibus de média capacidade, o que permitiria reduzir as velocidades de deslocamento na cidade. Para se ter uma ideia, em 1950 o tempo médio de deslocamento em São Paulo era de 10 minutos; hoje, é de 70 minutos.
Uma cidade que em apenas 40 anos quase dobrou sua população – de 1970 até 2010, saltou de 5,9 milhões de habitantes para 11,2 milhões – é sinônimo de uma cidade ingovernável.
A ingovernabilidade pode ser vista com clareza no uso do automóvel como meio de transporte individual. Em 2002, a frota de veículos no País era de 34 milhões. Em 2016, esse número já chegava a 90 milhões. Dá para estimar que pelo menos 90% das viagens dessa frota acontecem dentro das cidades.
Essa lógica de ordenação do uso do solo, que surgiu em contraposição à lógica dos trilhos, desqualificou as cidades brasileiras. Sequer foram tomadas medidas compensatórias para dar prioridade ao transporte público.
O resultado, mais que desafiador, é um retrato de nossa tragédia urbana.
* Ailton Brasiliense Pires é Presidente de ANTP – Associação Nacional de Transportes Públicos.
Artigo publicado no livro “Mobilidade Urbana sobre Trilhos na Ótica dos Grandes Formadores de Opinião”, planejado e publicado pela ANPTrilhos – Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos.
Artigo publicado no livro “Mobilidade Urbana sobre Trilhos na Ótica dos Grandes Formadores de Opinião”, planejado e publicado pela ANPTrilhos – Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos.
Fonte - ANPTrilhos 09/08/2018
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