sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Trilhos retornam a Cuiabá depois de quase um século

Transportes sobre trilhos

G1 - MT
foto - ilustração
Dias antes de seu casamento, a jovem Carmen Vilá Pitaluga, então com 22 anos, acordou cedo para preparar seu chá de panela. Era março do ano de 1914 e ela tinha de ir comprar o peixe que serviria de almoço às amigas em casa, no Bairro Dom Aquino, em Cuiabá. Com seu irmão, saiu de casa, atravessou o córrego da Prainha por uma pinguela e chegou à Praça Ipiranga. De lá, pretendia chegar à região do porto. Não iria de charrete, carroça, carro ou ônibus, tampouco faria o trajeto todo a pé: Carmen fez como a maioria das pessoas na época e embarcou em um bondinho puxado por burros.
Parte pouco documentada e pouco conhecida da história local, o rudimentar transporte sobre trilhos usado por Dona Carmen - que viria a se casar com o servidor público Jaime Pitaluga - fez parte do cotidiano na capital cerca de um século antes de se falar em VLT, o novo sistema de transporte coletivo movido a eletricidade que deverá ser instalado na região metropolitana por conta da Copa de 2014. Seus primeiros vagões já estão na cidade e foram feitos para tomar, na rotina das pessoas, o lugar que pertenceu aos bondinhos de tração animal cerca de um século antes.
Planejado para interligar o centro de Cuiabá ao Porto, o antigo bondinho funcionou entre os anos de 1891 e 1918 e se locomovia puxado por burros ao longo de trilhos que se estendiam desde o Largo da Mandioca (Praça da Mandioca), passando por áreas centrais como o Beco do Candeeiro, Praça Alencastro e Praça da República, entre outras.
Do centro ao porto
“Vou à cidade”, diziam os cuiabanos da afastada região portuária antes de embarcar rumo ao centro. A fala era recorrente, mas pouco restou de registros sobre este hábito. Quem conta é o neto de Dona Carmen, o historiador Paulo Pitaluga, apontando que a presença do bonde na vida urbana – mesmo que durante cerca de 30 anos – por pouco se perdeu na memória tal como os trilhos sumiram das ruas.
“Os jornais davam listas de nomes de quem desembarcava de barco aqui, mas não falavam do cotidiano da cidade. Falta muita informação. De 100%, não há nem 3% da informação que deveria existir sobre o bonde”, explica o historiador.
De fato, não são muitos os documentos preservados. As fotografias da época não raro continham trechos dos trilhos, mas não em primeiro plano ou com a população a bordo. O livro “Cuiabá – Imagens da cidade” (Editora Entrelinhas) é um dos poucos com esse registro. Nele, a historiadora Maria Auxiliadora de Freitas conta que a Câmara de Cuiabá debatia o problema dos deslocamentos urbanos desde 1871, mas só em 1889 portugueses e cuiabanos formaram a Companhia Progresso Cuyabano, Ferro, Carril e Matadouro para, finalmente, consolidar as linhas de bonde puxado a burro entre as duas principais partes da cidade num prazo de dois anos.
Antes disso, não havia meios de transporte coletivo entre o centro (1° distrito) e o porto (2° distrito); a população se via diante de “desafios a serem vencidos, pois eram quase dois quilômetros a pé, a cavalo ou de carroça por ruas em pedra bruta, formadas por derrame de rochas cristalinas extraídas do rio ou vindas de Chapada dos Guimarães. Um caminho cheio de bifurcações estreitas e poeirentas”, diz o livro, que também contém a fotografia que abre esta reportagem, do ano de 1891 e de autoria desconhecida. Com base nela, o arquiteto Moacyr Freitas produziu - com texto do próprio Pitaluga - uma de suas “Gravuras Cuiabanas”, desenhos a bico-de-pena que hoje também ajudam a recuperar parte da história local.
O bondinho passava lentamente por vias que hoje são algumas das de tráfego mais intenso da capital, como as avenidas XV de Novembro e a própria Prainha, atualmente com o córrego oculto sob o pavimento.
A principal linha, porém, era a Rua Treze de Junho. Nos tempos iniciais da República, segundo a historiadora Elizabeth Madureira, a Treze era uma das mais movimentadas ruas da cidade - que só em 1938 passaria a ter mais de dois quilômetros quadrados de perímetro urbano.
Tecnologia uruguaia, burro brasileiro
Segundo o escritor Lenine Póvoas, os bondinhos de Cuiabá eram idênticos aos usados na capital uruguaia, Montevidéu, com a única diferença de serem movidos por tração animal. Era suficiente para um perímetro urbano pacato, mas a segunda companhia administradora do bonde queria mais velocidade e tentou substituir o esforço dos brasileiríssimos burricos pelo vapor das locomotivas. Duas delas chegaram a ser inauguradas, mas não deram certo. “A bitola estreita dos trilhos não permitia a velocidade um pouco mais desenvolvida pelas máquinas, que ora e outra se descarrilava, voltando a funcionar com parelhas de burros”, conta o cronista Aníbal Alencastro.
Porém, tanto o animal quanto o bonde que ele puxava não tardariam a ser substituídos na condição de transporte coletivo em Cuiabá. Madureira conta que em 1918 o bonde foi substituído pelos primeiros automóveis e ônibus da cidade. Outra versão dá conta de que o administrador do bonde não teria suportado os prejuízos do negócio e suspendeu os serviços.
Já o doutor em História Social Fernando Tadeu aponta um fim parecido ao relatado por Madureira, dizendo que em 1920 o bonde caiu num “ostracismo”, perdendo espaço para os primeiros veículos motorizados.
Trilhos e progresso
De qualquer maneira, Tadeu enfatiza que os trilhos - do transporte urbano ou da frustrada interligação ferroviária com o restante do país - sempre estiveram associados à ideia de progresso no imaginário da população e devem desempenhar o mesmo papel agora, com o VLT, projeto de R$ 1,4 bilhão inicialmente alvo de polêmicas e atualmente criticado pelos atrasos constatados na obra.
“A espera dos trilhos foi despertada e alimentada a partir da segunda metade do século XIX, atravessou todo o século XX, e adentrou ao século XXI. A vontade da conquista do progresso por Cuiabá foi sempre uma forte bandeira de uma parte da sua população. Nada foi fácil para Cuiabá, que sempre enfrentou os mais diversos desafios”, conta o professor.
Fonte - Revista Ferroviária  21/11/2013

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